Como a Inter de Milão simboliza a nova era do futebol italiano: Da hegemonia da Juventus à busca da reconstrução sistêmica da Serie A
A newsletter de hoje explora como o futebol italiano está buscando se reinventar depois de anos de decadência. E nessa nova fase, com a Inter de Milão como a sua protagonista.
Do declínio à reconstrução: O futebol italiano em transformação
Durante quase uma década, o futebol italiano viveu sob a hegemonia da Juventus, que conquistou nove títulos consecutivos da Serie A entre 2012 e 2020. Esse domínio, embora tenha garantido estabilidade e projeção para o clube de Turim, coincidiu com um período de declínio sistêmico do futebol italiano em termos de competitividade internacional, atração de talentos e valorização comercial.
Contudo, nos últimos cinco anos, a Serie A passou por um processo profundo de reconfiguração competitiva. A Inter de Milão, símbolo máximo dessa nova era, volta a disputar mais uma final de UEFA Champions League, após ter chegado à decisão em 2023 contra o Manchester City. Um feito que sintetiza não apenas a ascensão do clube, mas também o renascimento de um ecossistema esportivo que busca reposicionar o futebol italiano no mercado global.
Neste artigo, analisamos como a busca pela transformação sistêmica da Serie A reposicionou o futebol italiano para uma nova fase, e com a Inter como protagonista simbólica.
I. O passado glorioso do futebol italiano: De potência global à crise sistêmica
Durante grande parte das décadas de 1980, 1990 e início dos anos 2000, o futebol italiano ocupou uma posição de protagonismo absoluto no cenário esportivo mundial. A Serie A foi considerada, por anos, a liga mais forte, rica e glamourosa do planeta, atraindo os maiores talentos e moldando a identidade do futebol europeu.
Entre os marcos desse período, destacam-se:
O Napoli de Maradona, que desafiou a ordem estabelecida ao conquistar dois scudetti e uma Copa da UEFA no final dos anos de 1980, transformando Nápoles em símbolo cultural e esportivo.
O Milan dominador das eras Sacchi e Capello, com múltiplos títulos europeus e mundiais, estabelecendo um paradigma de excelência tática e esportiva.
A Inter de Milão, que, após um período de seca, conquistou cinco títulos consecutivos da Serie A entre 2006 e 2010, coroando essa sequência com a tríplice coroa sob o comando de José Mourinho, afirmando-se como uma potência europeia.
A Seleção Italiana, tetracampeã mundial, com glórias em 1982 e 2006, consolidando o país como uma referência técnica, tática e emocional no esporte global.
Esse ciclo de ouro posicionou o futebol italiano como epicentro do esporte mundial — uma referência tanto em performance quanto em espetáculo.
II. O Calciopoli: O escândalo que acelerou o declínio
Esse protagonismo, no entanto, sofreu um golpe irreparável com o escândalo do “Calciopoli”, revelado em 2006. A investigação expôs um esquema sistemático de manipulação de resultados e interferência na escolha de árbitros, envolvendo alguns dos principais clubes do país, com destaque para a Juventus, além de Milan, Fiorentina, Lazio e Reggina.
As consequências foram devastadoras:
A Juventus foi rebaixada para a Serie B, perdeu dois títulos e sofreu uma profunda crise de reputação.
Outras equipes receberam punições esportivas e sanções financeiras.
Mais do que o dano imediato, o Calciopoli provocou um abalo sistêmico:
A credibilidade da Serie A foi profundamente afetada, comprometendo sua imagem internacional.
Houve uma evasão de talentos e de investidores, que passaram a preferir ambientes mais estáveis, como a Premier League e a La Liga.
O futebol italiano entrou em um ciclo de desvalorização econômica, com queda nos direitos de transmissão, perda de atração comercial e estagnação na modernização dos estádios.
O Calciopoli não foi a única causa do declínio, mas atuou como catalisador e símbolo de um sistema fragilizado, marcando o início de uma das fases mais críticas da história do futebol italiano.
Além disso, esse contexto de crise foi agravado pelo colapso financeiro de diversos clubes tradicionais. Ao longo dos anos 2000, várias equipes importantes da Itália enfrentaram falências e processos de refundação, como Napoli, Parma, Bari, Chievo Verona, Fiorentina e Torino. Enquanto alguns desses clubes conseguiram se reestruturar e voltar às divisões superiores, outros desapareceram ou permanecem distantes da elite.
Esse fenômeno evidenciou as fragilidades estruturais do modelo de gestão predominante no futebol italiano, reforçando a necessidade de reformas profundas que só começaram a ser implementadas mais recentemente.
III. O fim da hegemonia da “La Vecchia Signora”
Após superar as punições do Calciopoli, a Juventus promoveu uma das recuperações mais impressionantes da história esportiva recente, dominando a Serie A por quase uma década, entre 2012 a 2020, com nove títulos consecutivos da liga.
Esse ciclo foi sustentado por:
A inauguração do Allianz Stadium (2011), pioneiro na Itália em gestão de arena própria e receitas recorrentes.
Uma política agressiva de contratações de impacto, culminando com a chegada de Cristiano Ronaldo em 2018, como símbolo máximo de globalização e ambição esportiva.
Uma gestão corporativa que buscava alinhar desempenho esportivo e valorização de marca.
Esse processo de reconstrução dessa magnitude e em pouco tempo só foi possível graças ao apoio estrutural da Família Agnelli, uma das mais tradicionais e poderosas dinastias empresariais da Europa, controladora do grupo Exor, conglomerado que inclui ativos como Stellantis (FIAT, Jeep etc), Ferrari e a própria Juventus.
O suporte financeiro e estratégico da Exor foi fundamental para garantir a solvência e capacidade de investimento da Juventus, em um momento em que outros clubes italianos enfrentavam dificuldades estruturais mais severas.
Entretanto, essa hegemonia revelou-se insustentável a longo prazo. A partir de 2020, uma série de fatores minou a solidez do projeto:
Problemas financeiros estruturais, agravados pela pandemia e pelos altos custos operacionais.
Más decisões esportivas e técnicas, com dificuldade de renovação do elenco e da proposta de jogo.
Envolvimento em novos escândalos, como o caso das “Plusvalenze” (superavaliação de jogadores para inflar balanços financeiros), que culminaram em sanções e investigações recentes.
Com a queda do domínio do time de Turim, abriu-se um vácuo de poder que permitiu o ressurgimento de outros protagonistas e impulsionou o início de uma nova era no futebol italiano.
IV. O ressurgimento da pluralidade competitiva: Inter, Milan, Napoli e Atalanta
Com o colapso da hegemonia da Juventus, a Serie A entrou em um ciclo de reconfiguração competitiva, que recupera a tradição de uma liga caracterizada pela pluralidade de forças e pela capacidade de produzir múltiplos protagonistas.
Nos últimos cinco anos, esse movimento se consolidou em torno de quatro clubes que simbolizam a nova era do futebol italiano:
Inter de Milão:
Campeã nacional em 2021 e 2024, a Inter resgatou sua tradição de potência esportiva, sustentada por uma gestão mais racional e profissionalizada, com foco na redução de passivos, controle de custos salariais e um modelo esportivo baseado em coesão tática e eficiência financeira. Sua chegada à final da UEFA Champions League em 2023, e novamente em 2025 contra o PSG, é a validação esportiva e institucional desse modelo.
Milan:
Após anos de fragilidade e crises financeiras, o Milan ressurgiu com a conquista do Scudetto em 2022, impulsionado por uma política de organização e valorização de jovens talentos, com destaque para atletas como Rafael Leão e Sandro Tonali.
Entretanto, essa recuperação esportiva contrasta com um momento de instabilidade institucional. Em 2022, o clube foi vendido para outro fundo norte-americano RedBird Capital por cerca de €1,2 bilhão, um dos maiores negócios recentes do futebol europeu e um símbolo do apelo renovado da Serie A no mercado global.
Contudo, a transação está sob investigação das autoridades financeiras italianas e da UEFA por suspeitas de irregularidades e conflitos de interesse, o que expõe fragilidades na governança corporativa do clube. Paralelamente, a temporada 2024/25 foi uma das piores dos últimos anos, gerando crescente insatisfação da torcida, que critica tanto a gestão esportiva quanto as decisões estratégicas da atual administração.
Esse cenário revela as contradições do renascimento milanista: embora o Milan simbolize o potencial econômico e esportivo da nova Serie A, também expõe os desafios persistentes de governança, transparência e estabilidade institucional que ainda marcam o futebol italiano.
Napoli:
Depois do time ter ido a falência em 2004, quebrou paradigmas ao conquistar o Scudetto em 2023 e 2025, encerrando um longo jejum, com uma gestão orientada ao recrutamento inteligente e ao fortalecimento da identidade local.
Atalanta:
Consolidou-se como presença constante em competições europeias, apoiada em um modelo de jogo ofensivo, valorização de talentos e gestão altamente eficiente.
Esse ecossistema competitivo plural resgata características históricas da Serie A, tornando-a uma competição imprevisível, estrategicamente madura e cada vez mais atrativa para investidores, patrocinadores e talentos esportivos.
V. O papel da Inter de Milão como símbolo desta nova era
A Inter de Milão representa, de forma paradigmática, a síntese das transformações recentes do futebol italiano. Sua trajetória ilustra como um clube pode adaptar-se a um cenário esportivo e econômico mais complexo, abraçando uma gestão moderna e globalizada.
Governança e internacionalização: Sob a propriedade do grupo Suning da China (2016-2024), a Inter foi uma das pioneiras entre os clubes italianos na adoção de uma governança mais corporativa, com forte foco em processos de gestão, compliance e internacionalização. A marca foi especialmente promovida em mercados asiáticos e americanos, com campanhas de ativação digital e ações de branding global, aproximando-se dos padrões competitivos de clubes como o Manchester United e o Real Madrid.
Contudo, em função da crise financeira do grupo Suning, causada por endividamento excessivo e pelas restrições chinesas a investimentos no exterior, a Inter passou por um processo de reestruturação acionária.
Em 2021, o grupo Chinês contraiu um empréstimo de € 275 milhões com o fundo americano Oaktree Capital, de Howard Marks, utilizando suas ações como garantia. Diante da incapacidade da Suning de honrar o pagamento, a Oaktree executou a garantia e, em maio de 2024, assumiu oficialmente o controle acionário da Inter de Milão. Essa transição marca a entrada do capital norte-americano na gestão do clube, reforçando a tendência de financeirização e globalização que caracteriza a governança dos principais clubes europeus.
Modelo esportivo eficiente: Sob Simone Inzaghi, montou um elenco equilibrado, com veteranos e jovens promissores, e adotou uma proposta de jogo pragmática e intensa. A final contra o PSG é a validação esportiva desse modelo.
Reforço do ativo “marca”: Reformulou sua identidade visual, firmou novos acordos comerciais e ampliou presença em moda, tecnologia e entretenimento.
VI. A evolução do produto Serie A: Das deficiências estruturais ao reposicionamento global
Por anos, a Serie A foi considerada uma liga em declínio estrutural, com críticas recorrentes a aspectos como:
Estádios envelhecidos e infraestrutura inadequada, em contraste com o processo de modernização observado na Premier League e na La Liga.
Gestão conservadora, com resistência à internacionalização e à adoção de modelos corporativos de governança.
Baixa atratividade para investidores estrangeiros, que passaram a privilegiar ligas mais estruturadas e previsíveis.
Esse cenário comprometeu o valor de mercado da liga, impactando negativamente receitas de direitos de transmissão, patrocínios e atração de talentos. Nos últimos anos, contudo, a Serie A iniciou um processo progressivo de transformação, com avanços importantes:
Modernização de infraestrutura: Embora ainda tímido, há um movimento crescente de reforma e construção de estádios, com clubes como Juventus, Udinese e Atalanta liderando o processo, e outros como Roma, Milan e Inter planejando novos projetos.
Reformas institucionais: A Serie A promoveu ajustes significativos em sua estrutura de governança, buscando maior transparência, autonomia e uma gestão mais profissional.
Embora ainda enfrente desafios na cooperação entre os clubes, o avanço institucional é notável em relação à década anterior, especialmente com a centralização da venda de direitos e a criação de estruturas internas de supervisão e compliance, que cumprem funções equivalentes às de um comitê de governança, alinhadas às melhores práticas internacionais.
Reposicionamento de marca: Há um esforço coordenado para reposicionar a Serie A como um produto competitivo no cenário global, com foco em:
Ampliação da audiência internacional através de novos contratos de transmissão, especialmente na América do Norte e na Ásia.
Estratégias de digitalização e engajamento com o público jovem, com presença crescente em redes sociais, eSports e plataformas de streaming.
Enfatizar o retorno da pluralidade competitiva como diferencial frente a ligas mais previsíveis, estimulando o interesse esportivo e comercial.
Porém, em comparação com ligas como a Premier League e a La Liga, a Serie A ainda possui desafios significativos para sua evolução.
No entanto, o “ressurgimento” de clubes como Inter, Milan, Napoli e Atalanta, aliado ao aumento da competitividade interna, reposiciona a Serie A como uma das ligas mais emocionantes, imprevisíveis e em ascensão no futebol europeu.
Considerações finais
A Inter de Milão, ao disputar mais uma final da UEFA Champions League, consolida-se como o símbolo máximo do novo ciclo do futebol italiano: mais competitivo, profissional e relevante no cenário europeu.
Embora desafios como a modernização de infraestrutura e o fortalecimento da governança sistêmica permaneçam, a trajetória recente da Inter e de clubes como Milan, Napoli e Atalanta confirmam que o futebol italiano recupera sua capacidade de atrair investidores, talentos e patrocinadores.
Resta saber se a Serie A será capaz de consolidar esse renascimento, ou se corre o risco de sucumbir novamente às fragilidades que, no passado, abalaram sua credibilidade global.
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